CONHEÇA OS CAUSOS

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Não aparece nem um Coisa-ruim pra capinar a roça! - Sebastião Vicente da Silva

Sebastião Vicente da Silva, mais conhecido como “Tiãozinho da Lavrinha”, é lavrador e nasceu em 1957 em Luminárias, onde mora. No vídeo a seguir ele conta um conto que pertence ao grupo que Luís da Câmara Cascudo chama de Ciclo do Demônio Logrado.




Encontramos uma variante desse conto no verbete Diabo no Dicionário do folclore brasileiro de Luís da Câmara Cascudo. A estrutura central desses dois contos é a mesma: confrontando-se a astúcia feminina e a diabólica, a mulher sempre sai vitoriosa       

Com mulher ruim nem o diabo pode
Era uma vez um marido que estava desesperado de corrigir a mulher. Falou assim no meio da discussão: - Com você nem o diabo pode.
Boca, por que falou? Na mesma horinha apareceu o Chifrudo, na figura de um moço que queria emprego:
- “Me” chamou, estou aqui.
O homem, logo que se refez do susto, replicou:
- Está bem. O seu serviço é ficar por aqui, quando eu saio de casa, Algum servicinho na casa e no terreiro. Mas sempre olhando o que se passa, pra depois me contar.
Dessa vez o homem saiu sossegado para as suas tarefas.
Mal acabava de virar o espigão, já apareceu um senhor batendo à porta e olhando para o empregado com má cara. A mulher só lhe disse baixinho: - Eu arranjo!
Chamou o diabo e disse-lhe:
- Pegue este cesto e vá correndo buscar água no rio, pra passar um cafezinho.
O diabo foi. Enchia o cesto e vinha trazendo, mas a água escapava. Homem, até fez caminho na beira do poço e tanto encher e esvaziar o jacá.
Quando o patrão chegou, o diabo disse que desistia do emprego.
Referências bibliográficas:
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 11ª ed. São Paulo: Global, 2008.

Do marido que vendeu a mulher para o Diabo - José Omar Junqueira

O senhor José Omar Junqueira, também conhecido como Bispo, nasceu em 1933 na cidade de Luminárias - MG, onde passou a maior parte de sua vida exercendo o ofício de carpinteiro. Hoje aposentado mora em Três Corações – MG. No vídeo a seguir ele nos conta um conto tradicional que revela a profunda religiosidade do nosso povo brasileiro.


                                        


À luz dos escritos de Câmara Cascudo podemos identificar algumas características deste conto que revelam traços da cultura do nosso povo. A seguinte passagem revela a crença no poder de presentificação do nome (que foi explorada no caso do peão Paulino):
 “- ‘Se o Diabo quisesse fazer um negócio comigo eu fazia. Pra mim ter dinheiro pra comprar esse vinho.’ Ah! Foi ele falar isso, o bichão apareceu!”
O Diabo aparece imediatamente e engana o homem com uma proposta aparentemente fácil de ser cumprida:
“Não! Não precisa ter medo não! Só tem uma coisa, o que eu vou exigir é só isso: a hora que você for embora, que você apontar no morro lá e que ver a sua casa, o que tiver na... a primeira coisa que você enxergar na porta da sua casa, você traz pra mim. É só! Não precisa mais nada. E pode beber seu vinho aí, tem dinheiro que dá pra você beber vinho a vida inteira!”
Para a tristeza do lenhador, o que ele vê primeiro na porta de sua casa é a própria esposa. Teria então que entregar a mulher para o Diabo. Porém, Nossa Senhora vai em seu lugar:
 “Quando chegou perto o bichão olhou na cavaleira assim: ‘- Num é essa não! Num é essa não!’ E coisa ‘– Num é essa não!’ (...) E deu aquele estouro, deixou um cheiro de enxofre lá e sumiu.”
Na novelística popular brasileira, quase sempre que o Diabo é confrontado com Nossa Senhora, Jesus ou a Oração do Credo, desaparece fazendo um barulho e deixando fumaça com cheiro de enxofre. Isto ocorre, por exemplo, ao fim do conto “As perguntas de Dom Lobo”:
“O homão rangeu os dentes como um desesperado porque não podia dizer o santo nome de Jesus cristo. Deu um estouro que estremeceu tudo e subiu aquela bola de fumaça cobrindo o mundo.”
E ao fim do conto “Audiência do Capeta” (em que o Capeta toma a forma de um gatinho), ambos presentes no livro “Contos Tradicionais do Brasil” de Luís da Câmara Cascudo:
“... e ele apanhano um bom porrete, desandou com ança, mas porém, na cabeça do gatim, que deu aquele estouro que fedeu enxofre pru treis dias.”
Segundo Cascudo, todos os contos brasileiros em que aparece a figura do Diabo pertencem ao ciclo dos contos catequísticos. Este conto é um exemplo disto, o que é confirmado pela última fala do Sr. Omar:
 “E aí ele pegou o saco de dinheiro, jogou lá... fora. Converteu. Não quis saber mais de ouro pra beber cachaça não. Nossa Senhora salvou a esposa dele, salvou por causa da reza dela de todo dia.”

Referência Bibliográfica:
CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. 13ª Ed. São Paulo: Global, 2009.


O marido que vendeu a mulher para o diabo - José Omar Junqueira
Havia um lugar que fabricava um vinho muito bom. E tinha um lenhador - desses que corta lenha lá pro mato. E... ele gostava muito de vinho, e lá fabricava esse vinho muito bom. E aí um dia ele tava lá cortando lenha e pensando:
- Ô gente, eu gosto tanto desse vinho que ês fabrica aí! E eu num ganho nada. O que eu ganho não dá nem pá minha despesa e pá minha esposa. Se o Diabo quisesse fazê um negócio comigo eu fazia, pra mim tê dinheiro pra comprá esse vinho.
 Ah! Foi ele falá isso, o bichão apareceu:
- Eu às suas ordem! Tem aqui um saco de dinheiro, um saco de ouro pr’ocê bebê o seu vinho à vontade.
Ele ficou mei espantado com aquilo, porque num fazia... pensá no diabo pra arrumá o dinheiro e o diabo aparecê. Ele ficô mei sem jeito e tudo. E o diabo:
- Não! Não precisa ter medo não! Só tem uma coisa, o que eu vou exigir é só isso: a hora que ocê fô embora, que ocê apontá no morro lá, que vê a sua casa, o que tivé na... a primeira coisa que enxergá na porta da sua casa, traz pra mim, é só! Não precisa mais nada. E pode bebê seu vinho aí, tem dinheiro que dá pr'ocê bebê vinho até... a vida inteira.
Ele pensô assim:
- Ah, lá na porta da minha casa o que eu vou enxergá lá é uma cachorrinha magra que eu tenho... ou uma gatinha... umas galinhinha... não tem problema não!
E foi. Quando ele apontô, que viu a casa, a esposa dele na porta! Ele perdeu o jeito, mas perdeu o jeito de uma vez.
- E agora? Mas o jeito que tem é levá a esposa. Porque se eu não levá a esposa, eu é que vou morrê. O trato dele lá é esse.
E chegô em casa sem jeito, falô pra esposa:
- Amanhã cê vai comigo lá, pr'ocê ajudá a empilhá a lenha.
Ela achou mei esquisito aquilo porque ela tinha ido lá há pouco tempo, né? Pilhado... Agora tornô chamá... Ela ficou mei sem jeito com aquilo, mas aceitô e foi. Ele falô pra ela:
- Cê vai lá na mula, que ela tá meiguinha e eu vou a pé.
E pegou a mula e tudo no outro dia, e foi, a esposa muntou e ele foi.
E a esposa dele costumava rezá numa igrejinha que tinha perto da casa onde ês morava, no caminho tinha uma igrejinha, de vez em quando ela costumava rezá lá. Quando chegô perto dessa igrejinha ela falô pra ele:
- Espera um pouquinho aqui, que eu vô ali rezá uma Ave Maria e vorto, num demoro não.
Foi e vortô logo. Muntô na mula e foi embora. Quando foi chegando lá ele já viu o bichão lá. Lá, com o esporão! Raspava aquela espora no chão:
- Opa! Hoje eu feito!
Quando chegô perto, o bichão olhô na cavaleira assim:
- Num é essa não! Num é essa não e coisa! Num é essa não!
- É essa mêmo uai, minha esposa é essa aí.
E deu aquele estouro, deixô um cheiro de enxofre lá e sumiu! Ele vortô do susto...
- É... Eu trouxe a esposa, ele num quis! Agora eu fico com o dinheiro. E a esposa. Fico com o dinheiro e a esposa.
Já, ela num chegô nem descê do cavalo, ele pegô na rédea e puxô e foi embora. Quando chegô na igreja, ela disse pra ele:
- espera um pouquinho aqui, vô rezá uma Ave Maria e vorto.
E foi... Mas chegô lá e não vortava nunca! Uma hora, duas... e ele incomodado:
- Gente! E nem... e nem o meu fumo eu trouxe... e palha pá fazê um cigarro... e essa mulher não vem nunca. O jeito é ir lá, ir lá ver o quê que ela tá fazeno.
Quando chegou lá ela tava deitada, ele foi e chamô:
- Ô, mas eu tô pensano que cê ta rezano, cê ta deitada dormino aí?
Ela acordô e falô pra ele:
- Ô, mas ocê me acordô numa hora ruim! Eu tava sonhano que ocê me vendeu pro diabo! E eu cheguei aqui, Nossa Senhora falô pra mim: “Fica aqui fia, que o seu marido vendeu ocê pro Diabo, e eu vou no seu lugar!”
Muntou na... Aí ela levantô, muntô na mula e foi. E aí ele pegô o saco de dinheiro e jogô lá... fora e converteu. Não quis sabê mais de ouro pra bebê cachaça não. Nossa Senhora sarvô a esposa dele, sarvô por causa da reza dela de todo dia.

Outra versão do caso do "Peão Paulino"

O Sr. Balbino, que nos contou a estória anterior, nos emprestou o livro A freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Carrancas e sua História, escrito por Marta Amato. A autora dedicou um capítulo às lendas, “causos” e curiosidades da cidade de Carrancas, dentre os quais encontra-se O caso do Paulino que disponibilizamos a seguir.
Existem algumas diferenças entre a versão narrada pelo Sr. Balbino e a versão do livro. Porém, não se pode afirmar que esta ou aquela seja a verdadeira, pois os causos guardados na memória e transmitidos oralmente vão sofrendo modificações a cada vez que são contados. Desta forma, quem conta um conto, inevitavelmente, acaba aumentando um ponto.
LENDAS, “CAUSOS” E CURIOSIDADES
Verdade ou crendice popular? Alguns dizem que é verdade, outros não acreditam. Mas quem pode contestar o que o povo conta? As assombrações deixaram de aparecer nos nossos dias? Ou será que a televisão encobre os ruídos estranhos da noite, ou estamos sempre com tanta pressa que não nos sobra tempo para nos preocuparmos com o sobrenatural? Será que nossos avós eram mais supersticiosos do que nós? São perguntas que ficam sem resposta. Para quem acredita, o que vem a seguir tem um “quê” de real. Agora, quem não acredita é bom não passar sozinho pela porteira do Espraiado, ou se aventurar pelas estradas de Carrancas em noites de céu estrelado.
O caso do Paulino
O caso do Paulino é o mais conhecido e comentado na cidade até hoje. É um fato verídico. Aconteceu na semana das comemorações das festividades da padroeira da cidade, que é no dia 8 de dezembro.
Nessas ocasiões, as festas se prolongavam por vários dias, com quermesses, bailes, leilões, enfim, uma grande festança.
Pois bem, o caso é o seguinte:
Paulino Franco era um rapaz bem apanhado que provavelmente veio para a região com alguma tropa que passou pelo Rio da Prata, na Argentina, de onde era natural. Era um bom domador de burro bravo, não tinha nenhum melhor que ele nas Minas Gerais.
Veio para Carrancas contratado para amansar os animais da Fazenda da Rocinha e, quando terminou, foi trabalhar para o Coronel Antônio Francisco de Souza Andrade, na Fazenda da Serra das Bicas.
Logo conquistou a amizade dos moradores da pequena cidade, pois era galante, educado e muito trabalhador.
Assim integrado na comunidade, resolveu fixar raízes e conheceu Maria Jorgina Ribeiro, jovem de 18 anos, moça de boa família, filha de fazendeiros, de bons costumes, decente, honesta, que vivia de suas costuras. Era tudo o que ele precisava para compartilhar seus dias. Pediu-a em casamento. Foi recusado, não sabemos se por ela ou por seus parentes.
Pois bem, no dia 10 de dezembro de 1892, um sábado, a casa-grande do Coronel Antônio Francisco estava toda engalanada preparando-se para o baile que ia acontecer logo mais a noite.
A praça da Matriz, fronteiriça a casa, fervilhava de gente. Uma concorrida quermesse acontecia na praça e o leiloeiro chamava e desafiava os conhecidos para que arrematassem alguma prenda. Paulino, calado, não participava da alegria da festa. Num dado momento, apregoa-se uma estranha prenda: uma pequena tábua, envernizada, muito bem feitinha, com um cartaz dizendo: A TÁBUA DO PAULINO. Quando esta foi arrematada e entregue ao moço ele, intrigado, perguntou ao jovem Rozendo, filho do Coronel Antônio Francisco, o que aquilo queria dizer. Foi informado que segundo o povo, quando alguém era recusado, tinha levado a tábua.
Tinha virado chacota na cidade. Era demais para ele.Enraivecido, envergonhado, resolveu que a moça tinha que morrer, pois só assim ia lavar sua honra de homem. Decidido, arreou um burro onde colocou seus poucos pertences e deixou-o nas redondezas do povoado, preparando-se para a fuga. À noite, quando começou o baile, que era muito concorrido, entrou a casa-grande e, no intervalo de uma contradança, sem que ninguém esperasse, apunhalou a pobre moça.
A infeliz caiu morta e o assassino empunhando a arma do crime e encurralado num canto da sala, ameaçava os presentes, dizendo que quem se aproximasse teria o mesmo fim que ela.
Não percebeu a aproximação do Sr. Antônio José Corrêa, 1º Juiz de Paz e pai de Francisco Corrêa, 1º prefeito de Carrancas.
O Sr. Corrêa, sentindo-se indisposto, estava descansando num dos quartos que saía para a sala. Quando viu o ocorrido, estando o Paulino de costas para ele, usou a tranca da porta do quarto e acertando-o nas costas conseguiu derrubá-lo. O filho do Coronel Antônio Francisco, Américo Brasileiro, e outras pessoas presentes dominaram o assassino e acorrentando-o prenderam-no no pé de uma das pesadas mesas que havia na casa. Ali ele passou a noite.
No dia seguinte, a história do crime tinha se espalhado nas cidades vizinhas e, revoltados, os jovens das mesmas vieram para Carrancas, e, tirando Paulino das mãos do Coronel, amarraram-no no cruzeiro que havia na praça da Matriz.
A população não se atreveu a intervir, pois a turba irada estava incontrolável, e os moradores ainda estavam chocados com o acontecido. Ali começou o martírio do moço, que naquelas alturas já devia estar arrependido do que fizera.
Ele foi arrastado pela cidade, espancado, baleado várias vezes, mas era muito forte, sempre viveu no campo, na lida, e segurar um burro bravo era serviço para gente grande, com muita força.
Depois de muito judiado, ainda tinha vida. Então acharam que ele tinha parte com coisa ruim. Seguindo os conselhos de uma velha benzedeira, que só com uma bala feita com cera benta ele morreria, foram até a igreja, pegaram uma vela benta, com a qual esculpiram uma bala, colocaram na espingarda e atiraram. Paulino morreu.
Depois de morto, os ânimos ainda não estavam apaziguados. O medo do sobrenatural, a força e resistência do pobre coitado, junto com a superstição daquela época, fizeram com que resolvessem queimar o corpo.
Estavam juntando lenha para isso quando o Coronel Antônio Francisco interveio, pagou a um camarada para cavar uma cova do lado de fora do cemitério e para lá levar e enterrar o Paulino. Assim foi feito. Ainda se pode ver o local do sepultamento.
Alguns dos responsáveis pelo linchamento foram processados e absolvidos pelo júri do Turvo (Andrelândia).
A casa-grande, restaurada e ampliada, ainda existe. O caso ficou marcado para sempre na população e hoje algumas pessoas acreditam que, quando se perde algum objeto, é só rezar pela alma dele que se encontra.
Referência Bibliográfica:
AMATO, Marta. A freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Carrancas e sua História. São Paulo: Ed. Loyola, 1996.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O caso do peão Paulino - Balbino de Souza Rezende

Quem nos conta este causo é o sr. Balbino de Souza Rezende, nascido na cidade de Itumirim-MG em 1937. É motorista aposentado e atualmente vive em Carrancas - MG.

No vídeo, o Sr. Balbino diz:
Mas o homem não morria nem vê sô! Ele era muito forte, né? E até falaram que ele tinha pacto com o Coisa-ruim, antigamente usava essas coisa, né?”
Notamos nessa fala a sobrevivência do costume de não falar o nome do Diabo, pois acredita-se que o nome tem  poder de presentificação, falar o nome é chamar à presença. Esse é um costume que sobrevive desde a Grécia Antiga, como nos diz Luís da Câmara Cascudo no verbete “Nome” de seu Dicionário do Folclore Brasileiro:
“Esse respeito ao poder invocador do nome era patrimônio também da Grécia e do mundo clássico. Os gregos não pronunciavam ou pronunciavam o menos possível o nome de Átropos (a Morte), temendo que a terrível deusa atendesse ao apelo involuntário.”
É devido a esse costume que o nome do Diabo é comumente substituído por numerosos outros nomes. Em O léxico de Guimarães Rosa, Nilce Sant’Anna Martins afirma que a palavra Diabo “tem ocorrências numerosas e a sua sinonímia é deveras abundante”, citando A cultura popular em Grande sertão: veredas de Leonardo Arroyo que ressalta que esta sinonímia “alcança 92 vocábulos na Linguagem de Riobaldo”, Martins elenca todos esses sinômimos, dentre os quais: Berzebu, Capiroto, o Coisa-Ruim, o Cujo, o Demo, o Não-sei-que-diga, o Sem-gracejos, o Temba, o Tisnado, O-que-nunca-se-ri, Xu.
Na história do peão Paulino, são duas as causas da desconfiança de que ele tivesse “parte como o Coisa-ruim”: o fato de ser muito bom amansador de burros e a dificuldade que encontraram ao tentar matá-lo. Diz-se que a pessoa se tornava pactária para conseguir favores do “Cão”, tais como aprender a tocar viola, conseguir amansar qualquer animal ou nunca ser ferido por seus inimigos.
Luís da Câmara Cascudo aborda a questão do pacto em algumas obras. No livro Flor de Romances Trágicos que traz histórias de vida de cangaceiros famosos homenageados pelos versos populares no nordeste brasileiro, não é difícil encontrar alusões ao pacto com o Diabo:
“Diziam-no possuidor de pauta com o diabo, livrando-se de balas e tendo misteriosos avisos evitadores das emboscadas, dispostos pelos numerosos inimigos.”
O pacto com o Diabo também é abordado no romance Grande sertão: veredas de João Guimarães Rosa: o antagonista Hermógenes é um pactário e o protagonista Riobaldo busca fazer o pacto para conseguir derrotar seu inimigo.
“E, veja, por que sinais se conhecia em favor dele (Hermógenes) a arte do Coisa-Má, com tamanha proteção? Ah, pois porque ele não sofria nem se cansava, nunca perdia nem adoecia; e, o que queria, arrumava, tudo; sendo que, no fim de qualquer aperto, sempre sobrevinha para corrigimento alguma revirada, no instinto derradeiro.”
Cascudo ressalta que muitas vezes confunde-se o pacto com o fechamento de corpo. Em Meleagro ele esclarece que o fechamento de corpo tem somente a finalidade de defesa, enquanto que o pacto com o Diabo garante além da defesa outras vantagens e habilidades para o pactário.
“No Catimbó há o processo da imunização de todo o corpo, fazendo-o impenetrável às balas quentes e às facas frias, águas mortas e vivas, fogo, dentada peçonhenta, praga e malefício.”
Essa defesa conseguida através do fechamento de corpo aparece em Flor de romances trágicos:
“Diziam-no com o corpo fechado porque nunca fora ferido à bala embora inúmeras vezes seus inimigos descarregassem toda a carga dos revólveres à queima-roupa.”
Há uma grande semelhança entre esses escritos de Luís da Câmara Cascudo e o relato do Sr. Balbino:
“Amarrou ele no pé do cruzeiro, um cruzeiro muito forte também, uma madeirona grossa, né? Aí... mas... judiaram! Dava tiro no homem, mas o homem não morria nem vê.”
Referências Bibliográficas:
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 11ª ed. São Paulo: Global, 2008.
_______. Meleagro: pesquisa do Catimbó e notas da magia branca no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1978.
_______. Flor de romances trágicos. Rio de Janeiro: Cátedra, 1982.
MARTINS, Nilce Sant’Anna.  O léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: EDUSP, 2001.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.


O caso do peão Paulino – Balbino de Souza Rezende
Antigamente, aqui em Carrancas, pareceu um peão argentino aí. Chamava Paulino Franco, aí veio mansar tropa, mansá tropa nas fazenda aí. Ficô aí, ficô mais de um ano aí mansando tropa. E muito esperto, muito ativo, louco, era forçoso...
Aí ficô gostano de uma moça na fazenda aí, né? Ela chamava Jorgina. Aí começô um namorico lá e ele pediu ela em casamento. Naquele tempo o namoro era bem... os pai parpitava muito, a famía, né? Dava muito parpite e tudo, né? Mas ele ficô gostano dela, ela era uma costureira, aí pediu ela em casamento, mas não sabe por que... a famía não aceitô. Não quis o casamento dela com o peão Paulino não.
Aí quando foi na festa aqui de dezembro, todo ano faz a festa em dezembro aqui. Em mil oitocentos e noventa e dois, dezembro de mil oitocentos e noventa e dois! Aí muita barraca na rua, aquele movimento de gente, era muito animada a festa, né?
De repente, pusero lá, não sabe quem que pusero, uma tabuinha envernizadinha, arrumadinha com o nome né? Com o nome do peão.
Quando o leiloeiro gritô lá, botô no leilão, e veio, ninguém pôs lance não né? Mas o leiloeiro já veio com a tábua e entregô pro peão, né? Uma tabuinha bonitinha assim com o nome dele, né? Aí ele não sabia do costume não, ele era argentino. Aí:
- Pra quê? O quê que representa essa tábua aí?
Ês riro muito dele, que a turma do lugá já sabia, né? Da história... Aí um virô pra ele e falô:
- Não, isso aí é assim: quando um rapaz pede em casamento pra uma moça que não aceita, ês fala: “Leva a tábua! Toma a tábua!”
Levou a tábua.
Ê... mas o rapaz ficou envenenado! Nossa! O peão foi na lua e vortô. Num aceitô a história nem vê.
E quando foi de noite, no outro dia ia ter um leilão, teve leilão e depois teve uma festa, um baile, no casarão, ainda existe até hoje lá na praça, lá embaixo, né? O casarão da família do Coronel Rozendo.
Aí ele arrumô direitim tudo, aprontô, pra vingá da moça. Aí quando foi certa hora ele – dizem que tava dançano com a moça, outros fala que não tava – quando a moça foi passano perto, ele punhalô ela. Ele era muito treinado, esperto, ativo, né? E foi uma facada só, a moça logo, logo caiu e morreu mêmo. Quando ês cataro no chão já tava morta.
Aí foi aquele arvoroço e tudo lá, no salão. E ele encostô na parede com a faca, com o punhal na mão, e ninguém chegava perto dele. Í... mas ficô valentão mêmo!
Aí quando foi certa hora, um home, um fazendêro que tava dormino, viu o arvoroço, acordô, né? Veio por trás escondido, pegô a tranca da porta, deu uma trancada na cabeça dele! Aí ele bambeô e jogô no chão, né?
Aí ês pegaro, chegaro, marraro, marrô ele tudo, né? E começô a judiação, até no ôtro dia! Mas o home num morria nem vê, sô! Ele era muito forte, né? E até falaro que ele tinha pacto com o Coisa-ruim, antigamente usava essas coisa, né?
E quando ele, pôs ele lá no terreiro lá, marrô depois levô, marrô deitado, depois levô pra praça. Tinha um cruzêro na praça ali em baixo, né? Marrô ele no pé do cruzeiro, um cruzêro muito forte tamém, uma maderona grossa, né? Aí... mas... judiava! Dava tiro no home, mas o home não morria nem vê.
Aí foi priciso, uma dona muito religiosa é que trouxe uma vela benta, uma bala benta, né? Passô na vela da igreja, aí conseguiu terminá com ele, né?
Mas ó: mesmo assim ainda correu com ele pra cidade inteira. Falava que ia até quemá o corpo! Depois um fazendêro da época num aceitô não, quemá não.
Fizero um túmulo, uma sepultura pra ele de fora da igreja - aí depois dismanchô - de fora do cemitério, né? E enterrô ele lá. Fez lá um túmulo, pôs um monte de pedra assim, né?
Aí ês fala que até quem pegava caso difícil pá resorvê, pegava com a “arma” dele e era atendido, diz que recebeu até graça com a “arma” do peão Paulino.
Agora, isso foi em mil oitocentos e noventa e dois, já tem muitos anos, né? Cento e tantos anos, né? Mas até hoje o povo lembra dessa história, num esquece. Conteceu aqui em Carrancas e esparramô aí por roda, por Minas Gerais inteira aí né? Na época foi uma novidade muito grande, uma brutalidade dessa, umas coisa esquisita, né?